quarta-feira, 2 de setembro de 2020

 

O problema do PIB: mede o trivial e ignora o essencial

E isso leva à adopção de políticas pouco sensatas e até contrárias ao interesse comum

Dado que a pandemia do Covid-19 está a levar a uma reavaliação das instituições e dos métodos operacionais em todo do mundo, temos uma óptima oportunidade para reorientarmos o pensamento económico, de modo a que passe a corresponder mais corretamente às realidades da economia moderna. 

E isso começa logo por abandonarmos a forma tradicional de avaliação do PIB.

O Produto Interno Bruto é um anacronismo. Olhar para variação do PIB como indicador da saúde da economia (que é o que, na prática, fazem os economistas, a CS e os governos) faz tanto sentido quanto olhar para o número de calorias ingeridas por uma pessoa e daí determinar a sua saúde.

O PIB é simplesmente o valor monetário de todos os bens e serviços finais que foram comprados e vendidos dentro das fronteiras do país em um dado ano. 

Apenas para relembrar, o PIB de um país é calculado por meio da seguinte (e extremamente simples) equação:

PIB = C + I + G + X - M

C representa os gastos do setor privado, I representa o total de investimentos realizados na economia, G representa os gastos do governo, X é o total de exportações e M, o de importações.

Todos os problemas com esta equação do PIB já foram analisados neste texto, de modo que não necessitam ser repetidos aqui. A abordagem será outra. Aqui, será abordado tudo que o cálculo do PIB não mostra.

Visível, mas não calculado

O cálculo do PIB foi introduzido nos EUdurante a Segunda Guerra Mundial. O objectivo era medir a capacidade de produção da economia americana naquele período. A intenção inicial era exclusivamente essa. Sendo assim, até fazia algum sentido para aquele período. Hoje, não mais. 

Inadvertidamente passou a ser visto como indicador de bem-estar, de modo que todas as transações monetárias por ele calculadas passaram a ser vistas como sendo um progresso e uma contribuição para a saúde econômica do país.

Sendo um indicador de meados do século XX, o PIB serve para analisar a capacidade e a saúde de uma economia industrializada e homogénea, composta essencialmente de bens e serviços tangíveis. 

Falando mais diretamente, o PIB foi criado para contabilizar carros, frigoríficos, tanques e munições, e não para contabilizar aulas de ioga, armazenamento de dados nas nuvens, conferências via Zoom, motoristas de Uber, e vídeos do YouTube.

É revelador que os atributos mais enfatizados do PIB são os de que ele tem mais fácillidade de medir: apenas some tudo. Quanto mais, melhor. É simples.

Os defeitos mais significativos no cálculo do PIB não apenas o tornam um indicador enganador, como também levam a conclusões erradas sobre o que faz a economia pulsar. Tais erros, por sua vez, levam a políticas públicas extremamente prejudiciais.

O foco está errado

O foco exclusivo nos produtos finais mascara a real situação da atividade económica. Como bem sabe qualquer um que já leu o clássico artigo "Eu, o lápis", de Leonard Read, o grosso da atividade econômica está muito abaixo da superfície do produto final que compramos nas prateleiras.

Os produtos finais são transformados ao longo de múltiplas camadas de etapas intermédias, desde o seu início como matéria-prima até o produto final. Auxiliando no processo de transformação estão os bens de capital, a mão-de-obra, e os consumíveis complementares que são necessários para a produção do produto final.

É aí que as principais falhas da metodologia do PIB são reveladas.

A falácia da "dupla contagem"

Para evitar aquilo a que os economistas chamam de "dupla contagem", o PIB não contabiliza os gastos das empresas com investimentos em bens intermédios.

Bens intermédios são os utilizados (e consumidos) na produção de um bem final. Por exemplo, o pão vendido na padaria é um bem final. Equipamentos como as maceiras de mistura e os fornos utilizados pelo padeiro para fabricar o pão também são considerados bens finais no cálculo do PIB, pois eles não são gastos no processo de produção.

Em contrapartida, a farinha, o trigo e outros ingredientes incluídos no pão são considerados bens intermédis. Como tais, o dinheiro gasto pelo padeiro nestes items não são incluídos no PIB.

Da mesma forma, a transportadora que entregou a farinha na padaria forneceu aquilo que é considerado um serviço intermédio, de modo que o dinheiro gasto neste transporte também é excluido do PIB.

A explicação clássica para se evitar a "dupla contagem" dos bens intermédios no PIB é exemplificada pela alegação de que, se a venda de aço fosse acrescentada às vendas da Ford, o aço seria contabilizado duas vezes: uma quando foi vendido para a Ford, e a outra quando a Ford vende o veículo contendo esse aço.

Voltando ao exemplo do pão, imagine este simples cenário:

  • Um fabricante de fertilizantes vende sementes de trigo a um agricultor por €1.

  • Esse agricultor, que semeia trigo, vende-o ao moleiro por €3.

  • O moleiro faz a moagem e a trituração do grão, transforma o trigo em farinha e vende a farinha ao padeiro por €5.

  • O padeiro processa essa farinha, faz o pão, e vende o pão ao consumidor final por €6.

O preço final de venda do pão é €6, mas os fluxos totais intermédios no processo são €9. Obviamente, o total gasto nos bens intermédios não está incluído no preço de venda final.

O quede facto está incluido no preço de venda é o valor acrescentado em cada fase pelos bens intermédios.

  • O valor acrescentado pelo fabricante de fertilizantes é €1.

  • O valor acrescentado pelo agricultor de trigo é €2 (ele vendeu o trigo por €3, mas gastou €1 no fertilizante).

  • O valor acrescentado pelo dono do moinho de trigo é €2 (ele vendeu a farinha de trigo por €5, mas gastou €3 no trigo).

  • O valor acrescentado pelo padeiro é €1 (ele vendeu o pão por €6, mas gastou €5 na farinha de trigo).

É o valor acrescentadoo que está incluído no preço final das vendas.

Os investimentos, e não os consumos, representam a maioria dos gastos na economia

Todos os consumos em bens intermediários representam apenas aproximadamente 30% da economia.

O economista Mark Skousen há muito vinha clamando pela necessidade de uma medida a que ele chama de Produto Integral, a qual captura todos os gastos da economia. Em 2014, esta medida foi adotada pelo Departamento de Comércio dos EUA. Ela revela que a maior parte da atividade econômica envolve não os gastos em consumo de bens finais mas sim investimentos das empresas na produção destes bens.

Daí podemos concluir empiricamente aquilo que a teoria já explicava há muito tempo: não é o consumo o que impulsiona a economia, são os investimentos.

Outros três problemas fundamentais

Além deste problema matemático-económico, há outros três problemas fundamentais na utilização do PIB como uma medida da saúde geral da economia.

O primeiro é a sua incapacidade de fazer distinções qualitativas. As distinções qualitativas que o PIB é incapaz de fazer podem ser separadas em duas: diferenças qualitativas entre coisas semelhantes e diferenças qualitativas entre coisas distintas.

Eis um exemplo:

  • Um laptop de hoje que custa €3.000.

  • Um laptop que à quinze anos custava €3.000.

De acordo com a equação do PIB, ambos representam contribuições equivalentes à saúde da economia. No entanto, qualquer ser racional consegue entender a enorme diferença nas capacidades dos computadores em questão. Só que isso é completamente ignorado na métrica do PIB.

O mesmo ocorre no caso a seguir, que ilustra a segunda das duas maneiras como o PIB ser incapaz de considere distinções qualitativas:

De novo, qualquer ser racional consegue entender que estas duas coisas fazem contribuições qualitativamente distintas para a saúda económica e pessoal do país. No entanto, e novamente, em termos de PIB, não há nenhuma distinção entre ambos.

O segundo problema na utilização do PIB como uma medida da saúde geral da economia é que ele não inclui nenhuma medida das perdas que a economia sofreu ao longo do ano.

Houve furacões ou enchentes devastadoras? Tudo o que aparece na estatística do PIB é um aumento nos gastos com construção. 

Três novos smartphones e um microchip muito mais rápido surgiram este ano? Você não encontrará a depreciação dos modelos anteriores na métrica do PIB.

A produção de energia termoelétrica aumentou? Uma indústria, ao produzir algum bem, consumiu recursos naturais até seu completo esgotamento? O custo da degradação ambiental não aparece no PIB. A violência levou a um aumento dos gastos com proteção individual (cercas elétricas, alarmes, câmeras internas)? O PIB sobe. Mas o efeito deletério da criminalidade não aparece.

Finalmente, o terceiro problema básico na utilização do PIB como medida da saúde geral da economia é que ele não contabiliza trabalho não-assalariado — isto é, o tempo gasto nas lides domésticas, ou no cuidado das crianças e idosos, por exemplo. Se estes serviços forem pagos esse trabalho será incluído no PIB; se for para "auto consumo" não está incluido no PIB. Faz sentido?

E aqui vai um extra: se você vai para o seu trabalho a pé em vez de ir de transporte próprio ou público, isso é "mau" para economia.

Para concluir

Basear-se na enganosa e falaciosa medida do PIB como indicador da saúde da economia faz com que políticos dêem prioridade a medidas destrutivas voltadas a objetivos errados. 

O foco sempre será o de aumentar o consumo (o C da equação) via políticas de "estímulo", aumentar os gastos governamentais, incentivar as exportações por meio de desvalorizações cambiais e restringir as importações por meio de tarifas proteccionistas. Tudo em detrimento da poupança e do investimento privado. Isso irá apenas levar a um maior endividamento das pessoas e a uma exaustão da capacidade produtiva da economia. 

Se ao menos a pandemia de Covid-19 levasse a uma reformulação do PIB…



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